Empreendimentos

quarta-feira, 18 de março de 2015

AUTISMO (ASPERGER), ANTONIN ARTAUD E O TEATRO



(No fim deste artigo, caso queira, poderá acessar a obra acima: A Sombra do Pai)


Após haver descoberto em 2014 que possuo desde a infância o que a medicina atual reconhece como Transtorno do Espectro Autista, ou Síndrome de Asperger, conforme antes se nomeava, muito do que já havia escrito começou automaticamente a passar por uma revisão em minha mente, revelando novos significados. Isto é uma verdade principalmente na obra A Sombra do Pai, que é em parte ficção, em parte baseada em dados  documentais da vida do ator frans, também poeta, escritor e diretor de teatro, Antonin Artaud. Comecei a me perguntar se Artaud possuiria também aspectos do espectro autista. Seria necessário um estudo muito profundo para chegar a uma conclusão mais acertada. Mas pelo que já refleti, Artaud possuía algumas características nas quais eu, como autista, intuitivamente senti afinidade. Embora os autistas possam ser vistos como pessoas com uma capacidade de empatia muito reduzida, pela minha experiência e a visão de pesquisadores eles tem na verdade uma empatia e uma sensibilidade em excesso, o que causa todo o desequilíbrio. Cada caso possui particularidades diferentes. Contudo, em geral, o cérebro do autista tem uma dificuldade maior em agrupar e organizar certos estímulos do meio externo (podendo ser sons, vozes, cores, cheiros, etc), o que acaba por causar uma sobrecarga de estresse em seu sistema nervoso, que por consequência se torna frágil. Assim, devido a uma sensibilidade extrema, o seu organismo, em busca de uma defesa, cria automaticamente um isolamento em torno de si, e se guia de uma forma muito lógica, seguindo padrões de comportamento que servem como um escudo de proteção contra o excesso de sons, pensamentos, interrupções, ou outros fatores em geral que lhe agridem. Com isto, o autista se desliga, isolando-se em seu modo de ser particular, o que dificulta e mesmo impede com que aprenda a relacionar-se com os demais de forma satisfatória.

Assista nos vídeos abaixo alguns exemplos de uma grave desordem sensorial do espectro autista.




As emoções e reações dos outros podem parecer rápidas, violentas demais para o autista, e também incompreensíveis, visto que não estão de acordo com os padrões de comportamento e pensamento que seu cérebro é obrigado a utilizar para se guiar no mundo. Com certeza encontrei em Artaud muitos fatores em comum com estas características, o que se poderá verificar no livro A Sombra do Pai. O seu sistema nervoso era de fato muito frágil desde criança. Sofria convulsões inexplicáveis. Com um caráter por vezes irritadiço, tinha dificuldade em controlar suas atitudes, principalmente quando entusiasmado.

Temos um exemplo muito claro disto no livro A Sombra do Pai quando Artaud é advertido pelo seu diretor Dullin a não interpretar o Imperador Carlos Magno de certa forma em um espetáculo. E no entanto, em plena apresentação, Artaud desconstrói seu personagem do modo que sempre quis, fazendo-o arrastar-se no chão de uma forma intensa e alucinante. Para Artaud, agir assim não era apenas uma meta que tinha traçado, mas um extrema necessidade interna. Lembra-me muito a minha própria dificuldade em quebrar padrões, principalmente quando iniciava e me via absorvido em uma atividade ou projeto. Ter de mudar de direção para o autista muitas vezes é como quebrar um equilíbrio interno dentro de si, frágil e conquistado a muito custo, o que resulta em um intenso mal estar interior, ferindo-o e causando-lhe irritação. Devido a este fato, a revolta e a impetuosidade de Artaud em não conter seus impulsos é algo que sempre me tocava forte de alguma forma. Embora, diferente de Artaud, por questões da infância, eu tenha por muito tempo me sentido culpado por minha inadaptação, e me fechado, impassível, em vez de gritar ou me rebelar contra as situações que não conseguia suportar. Na verdade, é possível que estivesse buscando a própria rebeldia de Artaud, tendo em vista que gritar e parecer um desajustado poderia talvez ser bem melhor do que me calar e ser uma pessoa, além de inadequada, sem ação, alguém que somente consegue guardar para si o veneno da dor. Artaud sempre se recusou a guardar a dor somente para si, e além disto, ousou mais: ousou denunciar que seu sofrimento era na essência o sofrimento de todo ser humano. Ao contrário dele, muitos simplesmente se dava ao luxo de ignorar o mal estar universal frente ao mundo devido a puro comodismo, ou por não possuírem a mesma sensibilidade extrema. Nas palavras de Artaud, em seu texto O Pesa Nervos, "O difícil é encontrar o seu lugar exato e reencontrar a comunicação consigo mesmo. Tudo está em um certo pipocar das coisas, [...] em torno de um ponto que falta justamente por encontrar." Por coincidência ou não, estas são palavras ideais para descrever uma condição autista.




Artaud sofria com sua sensibilidade, não apenas de forma física e nervosa, mas também afetivamente. Escolheu o teatro como um meio de cura e de trilhar o seu destino. E após o meu diagnóstico, pude entender muito mais o porquê. No trecho desta obra em que descrevo seu treinamento de ator com o diretor Dullin, vejo muito de mim mesmo quando também havia intentado o teatro. Primeiramente, os exercícios teatrais de sensibilização, atenção e inter-relação possuem um aspecto terapêutico, podendo significar uma possibilidade de finalmente se acalmar, de finalmente sentir o mundo ao redor, de redescobrir uma forma de contato com o outro. Lembro que ao ler o primeiro livro sobre a arte teatral, do mestre russo Constantin Stanislavski, havia me encantado a máxima de que o ator deveria considerar seu ambiente de trabalho como se fosse algo sagrado, procurando realizar seu treinamento ou  ensaio  em  total  atenção, sem interrupções ou distrações,  a fim de atingir uma expressão ou  desempenho  pleno e autêntico do seu ser por inteiro, incluindo corpo e alma. Isto de alguma forma é algo que o autista procura fazer em seu ritual de padrões ou repetições. Ele procura se isolar das interrupções do mundo externo que o estão agredindo, a fim de encontrar enfim a paz em si mesmo. Desde os casos mais graves, em que o autista grita, fica na ponta dos pés, balança o corpo de um lado para o outro sem parar, até os casos mais brandos, em que a pessoa preserva a fala e um raciocínio compreensíveis, mas fica confusa ao ser interrompida em uma atividade, ou se sente mal quando não pode mais fazer algo que transformou em um ritual, ou se sente perdida ou isolada quando seu cérebro condicionado não consegue ligar-se a assuntos fora do seu interesse restrito; em todas estas situações o autista está tentando se concentrar em um padrão ou atividade que lhe possibilite se acalmar, se autorregular, a fim de que consiga sentir sem perder-se num mar de estímulos que para ele é insuportável. No trecho abaixo, retirado da obra A Sombra do Pai, é algo neste sentido que Artaud procura fazer em um período de suas primeiras internações. 

Em meio aos meus gritos abafados, meus sussurros, minhas orações desarticuladas, no delírio de meu corpo, que por vezes corria e transpirava, e caía, e rolava, numa tentativa extrema de cura, eu buscava um escape, uma fuga para fora do estrangulamento de uma imobilidade permeada de dores.
       Os que me tratavam, crápulas ordinários, escravos da altivez restrita de seus pensamentos, para minha desgraça ignoravam por completo o sentido oculto e superior de minhas ações. De modo algum podiam é claro, conceber minhas atitudes como uma coerente, lúcida e necessária tentativa para libertar-me do meu mal. Ao contrário, precisavam castrar a minha necessidade de gritar e de reagir contra a opressão interna de meu ser. (...)
     E assim o fizeram contra minha vontade, que para eles nada significava. Um dia arrancaram-me do meu quarto, interrompendo um dos meus fervorosos arrebatamentos (...)
     Doutos de um nada arrogante! (...) fizeram o que apenas sua ignorância letrada seria capaz: recebi injeções; doses e doses de morfina; mergulharam-me em um mar de antibióticos e produtos químicos, que me corromperam o sangue (...) afogaram-me no corrosivo abraço de entorpecentes e drogas químicas das quais regresso algum mais havia – regresso algum.
        

Os textos de Artaud sobre os problemas mentais inspiraram a Antipsiquiatria, um movimento que passou a considerar certos comportamentos incomuns não propriamente como uma doença, mas como uma forma do organismo tentar se autorregular e encontrar a cura. Neste sentido,  a  missão  do médico ou terapeuta seria evitar reprimir as atitudes não usuais do seu paciente, aceitando-as em um primeiro momento como parte importante do processo para se atingir o equilíbrio físico e mental. Em casos de autismo, esta prática é notória no método Son-Rise, no qual o terapeuta aceita e até mesmo compartilha as atitudes vistas como inapropriadas pelo senso comum,  repetindo-as junto com o seu paciente, compreendendo-as como uma necessidade, a fim de estabelecer  conexão e confiança. Neste processo, o terapeuta aprende como penetrar no mundo isolado, frágil do autista, para depois auxiliá-lo a encontrar uma saída do isolamento.

Abaixo, um vídeo explicando o método Son-Rise para o autismo.




Conforme o pensamento de Artaud, mais tarde compartilhado por outros médicos e estudiosos, a agressividade e a condenação pelos demais em relação às atitudes vistas socialmente como impróprias em nada auxilia, mas pelo contrário, acaba por agravar toda a situação, criando uma espécie de nó cego que detém ainda mais a pessoa no processo do seu comportamento, convertendo cada vez mais a sua condição em uma prisão sem saída. Resta reinvindicar como Artaud que este mal entendimento das coisas enfim acabe, e que os autistas, ou demais que sofram de outras feridas do corpo e da alma, outras formas dolorosas do não-ser, encontrem o amparo e a compreensão que necessitam e merecem, sem o veneno de críticas ou pré-julgamentos inadequados, livres de imposições sem consciência, de censuras tentando  obrigar seu organismo já castigado a suprimir reações – que além de necessárias no momento, escapam brutalmente do seu controle.            


       Enquanto não conseguirmos solucionar qualquer uma das causas do desespero humano, não teremos o direito de tentar a supressão dos meios pelos quais o homem tenta se livrar do desespero.
         (Antonin Artaud, em: Rebeldes e Malditos: Escritos de Antonin Artaud, pág. 24).




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